CONTO: Últimas palavras.

Imagem: Dave MacKean




















Querida... Eu vou morrer.

Sei que você não acredita e eu não posso te convencer. Bem que eu tentei, nossa como tentei! Mas você prefere negar a me dar alguma credibilidade. Aliás, isso não me surpreende - Mulher teimosa!
Bom, quando chegar a hora você terá que dar o braço a torcer - verá que eu tinha razão, desde o começo eu tinha razão - Hahaha...

Pena que eu já não estarei aqui para saborear essa vitória. É mesmo uma pena. Daria tudo pra ver a sua cara, a expressão surpresa, o susto, a irritação. É até engraçada a satisfação que algo assim me causa. Talvez nem eu mesmo tenha percebido a gravidade da situação, quem dirá você, tão apegada a mim, tão boba...

Escrevo isto, pois você nunca me deixaria falar aquilo que realmente importa - aquilo que ME importa! Ficaria repetindo “isso é besteira, vai passar”, me chamaria de ególatra, hipocondríaco, riria de minhas certezas – sim querida, certezas – é você quem as chama de dúvidas. Para mim a morte iminente é tão concreta quanto esta merda de caneta bic com a qual escrevo esta carta besta.

Mulher, eu vou morrer!
Não sei como, nem quando ou o porquê, mas sei que será em breve, muito breve. Sinto o bafo quente em meu pescoço, percebo os olhos a me observar nas sombras, ouço os sussurros, os passos se aproximando. Você me chama de louco, de besta, de doente, mas sabe o que eu realmente sou? Um homem morto! Pré-morto, pra ser mais exato.

E é por isso que não quero e nem vou desperdiçar o pouco tempo que me resta em supermercados ou visitas àquela vaca da sua mãe! Danem-se as prestações e aniversários, eu não tô nem aí pra essas formalidades idiotas que só tomam o meu precioso tempo! A partir de agora, a única cerimônia a qual vou comparecer é ao meu próprio funeral. Do enterro pretendo passar longe. Nunca acreditei nessas baboseiras de pós-vida, mas querida, estou revendo os meus conceitos!

E falando nisso, batize o Júnior em uma religião qualquer, tanto faz, escolhe no dado. Vai que no futuro ele é barrado na porta “lá de cima” por falta de uma aguinha na cabeça... Seria ridículo! Só deixa pra fazer isso depois que eu já tiver partido. Você bem sabe que eu não tenho saco pra essas coisas. Nunca tive! Por isso mesmo não nos casamos.

Por isso e porque eu nunca me divorciei legalmente da Luíza - Pronto, falei!
Vai fazer o que agora, me matar? Espera pra chutar o meu cadáver, vai ser mais divertido. Só lamento informar que este prazer não será só seu: terá que dividi-lo com a Luíza, alguns cobradores e talvez até com a vizinha do terceiro andar.
Será um velório memorável!

Bem lembrado: Sabe aquela vez em que eu NÃO tive um caso com a vizinha loira gostosa, aquela do terceiro andar? Pois é. Corta a parte negativa da frase e é mais ou menos por aí.

O que, não entendeu? Tá bom, eu comi ela uma vez ou duas... Três, no máximo, mas não me arrependo. Ela era mesmo gostosa! Além disso, você tinha entrado naquela onda budista de desapego - Ah, vá-se a merda com desapego! Eu teria te comido muito mais se você tivesse deixado, mas não, sempre tinha uma coisa ou outra: “tô gorda, tô triste, tô grávida”

Quer saber a verdade? Pra mim, você sempre esteve linda! Até quando pintou o cabelo daquela cor estranha que eu não gostei. Que cor era mesmo? Rubi? Pra mim aquilo era rosa e um rosa muito do feio! Mas... Eu nunca entendi de cores, não é mesmo?

Exceto a cor dos teus olhos, castanhos claros com pontinhos esverdeados quando acorda de manhã. Essa cor eu nunca esquecerei... Posso não saber a data do nosso primeiro “sei lá o que”, mas sei exatamente qual dos teus seios tem uma pinta: o esquerdo! (haha te enganei! tolinha)
Nossa, tivemos bons momentos...

Lembra aquela viagem ao Caribe?
Pois é, nunca fomos ao Caribe, não deu tempo, não deu grana... Não deu! Vai ter que ficar pra próxima. Agora é tarde. Tarde demais para eu me perder em lembranças.

O passado é eterno e o futuro é um suspiro que eu não quero dar.
Não ainda, não assim...

Por isso querida, eu te imploro: Acredita em mim, ao menos agora!
Prometo que nunca mais vou te incomodar, (vou morrer sem ter te comido “daquele jeito” - mulher cruel!) nunca mais vou te pedir coisas estranhas ou obscenas, nunca mais vou te cansar com as minhas loucuras, só te peço uma coisa, um último favor:

— Querida, me ajuda a morrer que, sozinho, eu não consigo.

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