CRÔNICA: Falando com estranhos

Publicada no Jornal Agora 21/22 mar/2009 - Ilustração: Lorde Lobo

Minha mãe sempre dizia
(e provavelmente a sua também):
Nunca fale com estranhos!
E eu me perguntava: o que fazer se um estranho falar comigo?
E se eu não “reconhecer um estranho”?
O que é um estranho?
Imaginava um ser com duas cabeças, três olhos e quatro braços.
Meu estranho imaginário era multicolorido: verde, rosa e azul.
Alguém "petit poá" – Isso sim seria estranho!
Até que tive catapora...
Bem, foi preciso rever meus conceitos, caso contrário, seria eu uma estranha e estaria fadada a uma vida de solidão, já que ninguém fala com estranhos, a não ser talvez, seus semelhantes, coisa que eu não faria – era muito obediente!

O tempo passa e nós crescemos, mudamos, deixamos pelo caminho nossas manchas de catapora, mas não abandonamos os maus e velhos hábitos: não falar com estranhos!
Mas afinal, como e quando alguém deixa de ser estranho e merece a nossa confiança ou, numa primeira instância, nossa atenção?
É um assunto complexo, mas pertinente. Por que surgiu a tal advertência maternal? Proteção?
Então nossas crianças estão 100% seguras na companhia de parentes e pessoas ditas conhecidas?
Em um meio saudável - Sim.
Porém, as estatísticas mostram uma triste verdade: a maior parte dos crimes de abuso e violência infantil ocorre dentro do ambiente familiar.

Assim sendo, "proteção" não parece a melhor resposta.
Para se manter alguém totalmente protegido dos perigos do mundo, só mesmo pondo-o numa redoma - e de diamante – pois a de vidro quebra fácil!
Teríamos nosso bem mais precioso muito bem guardado: Ele não falaria com estranhos, nem com conhecidos, com ninguém! No máximo abanaria – isso se o cristal permitisse a visão!
Como, senão interagindo com estranhos, fazemos amigos e amores?
Ainda mais nos dias atuais, com a popularização da internet conectando pessoas – estranhas e distantes – conceitos estes que se tornaram questionáveis e relativos.

Deixando de lado a física e a geografia: simples presença não significa real proximidade.
Quanto tempo é preciso para se conhecer alguém realmente?
Meses, anos? Toda uma vida? Tanto faz.
Não é o tempo quem transforma estranhos em conhecidos, mas sim as experiências trocadas, as memórias geradas, a real proximidade alcançada.

Com que frequência você realmente fala com estranhos?
Algo além do trivial, aquilo que pede a boa educação.
Já se preocupou em saber o nome do porteiro, padeiro, lixeiro, enfim, de algum dos “estranhos nossos de cada dia”?
Aqueles que nos atendem gentilmente, diariamente e dos quais dependemos muito mais do que valorizamos!
Já pensou se num belo dia todos estes “estranhos conhecidos” simplesmente sumissem? Certamente seria um caos! Mas sabe o que é mais estranho?
Você os vê com mais frequência que a muitos de seus amigos e parentes.
Alguns talvez até os vejam mais do que a sua própria mãe e nem ao menos sabem seus nomes. Isso quando os cumprimentam!

Este "estranhamento opcional" esconde em si um preconceito social, disfarçado e enfeitado por nomes bonitos: privacidade, pressa, polidez.
Quem já conhece esta verdade merece os parabéns!
Quem não conhecia, que tal a partir de agora, nem que seja só um pouquinho, pela indispensável boa educação ou ao menos pra provar que você cresceu ao contrariar a velha ordem:
Vamos falar com estranhos?



Ilustração 2: Jairo TX

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