CRÔNICA - Morte e Remédios









Publicada no Caderno Mulher - Jornal Agora Maio/2009
Ilustração: Lorde Lobo








Fiquei doente.
Uma destas enfermidades bestas que nos encontram no inverno, como punição por se desafiar as leis do frio. Uma das famosas “ites” (cistite ou infecção urinária, neste caso), o que me levou a tomar duas atitudes, uma que adoro – ler bulas de remédios – e outra que detesto – tomá-los!

Então, lá estava eu em minha leitura educativa, descobrindo que deveria ingerir o antibiótico a cada doze horas e o analgésico a cada quatro, quando pensei na morte – não necessariamente a minha, afinal, era só uma cistite – mas sim na forma como a morte parece também atuar em doses homeopáticas. Ela chega de mansinho, pouco a pouco: uma gripe, uma infecção qualquer, dores, e assim, nos deixa pequenos avisos, recadinhos não muito carinhosos, até o “grand finale“.

Certa vez eu li algo à respeito numa revista em quadrinhos (da série “Sandman” do escritor inglês Neil Gaiman), algo que muito me intrigou:

“Como um ladrão que entra em sua casa aos poucos, levando pequenos objetos, até que um dia você percebe a casa vazia e já não há mais nada que lhe faça permanecer nela”

Lembrou-me uma roupa excessivamente grande a qual você já não preenche, já não lhe veste bem, teima em cair, mas que, ainda assim, você gosta tanto que não quer lhe trocar por nada. Até que o tempo passa e um dia você se pergunta:
– hei, por que é mesmo que eu gostava tanto dela?
E agora ela lhe parece tão inadequada que você simplesmente a abandona e sai por aí, nu, em busca de uma nova.

Quando criança, eu pensava muito em como os velhos realmente velhos se sentem – embora algumas pessoas já nasçam velhas e para essas, o passar do tempo não deve trazer grandes mudanças – mas eu me refiro à alguém de espírito infantil que se vê repentinamente preso a uma roupa assim, grande demais, como um brinquedo cuja pilha acabou há muitos anos...

Por muito tempo acreditei que a morte era um ser muito cruel. Ela não precisa realmente das doenças e, além do mais, existem os remédios. Se formos analisar este aspecto, provavelmente uns três quartos da população mundial pode ser considerada parcialmente morta – ou viva, dependendo do referencial adotado – pois só se mantém viva enganando constantemente a morte, com remédios, vacinas e outros artifícios medicinais.

Não, ela não precisa das doenças, pode agir rápida e certeira, sem dor ou aviso prévio, sutil ou brusca, com o faz com tantos... E foi só hoje, em meio a minha educativa leitura de bulas que, enfim, entendi o porquê das doenças e percebi o quanto estava enganada em relação à morte.

É algo semelhante ao ladrão de objetos. Você conhece a velha premissa:
“A gente só valoriza algo quando o perde e passa então a dar mais valor àquilo que fica”.

Então não, ela não é cruel, mas sim muito sábia! Este pensamento foi como uma revelação – mudou o meu pensar, o meu olhar e trouxe tamanho alívio que... Ufa... Mas, enfim, vou tomar meus remédios, pois já está na hora novamente.

Comentários

A ameaça da perda já basta...
Melhoras!