CONTO - Rabiscos de um quase normal

Hoje não acordei. Não acordei, pois só acorda quem dorme. Permaneci em meu estado de semiconsciência, instável, mutável, ora letárgico - quem dera lisérgico - com picos de excitação. Num limiar que vai do desespero latente ao vazio hiperativo.

Fui ao banheiro e quando lá cheguei me deparei com um sujeito que não conheço. Nunca o vi mais magro. Sujeito estranho, espiava-me através de uma janela imitando meus gestos e caretas. Era bem feio o coitado, mas quando sorri, ele sorriu de volta, respondeu ao meu aceno, logo simpatizei! Prometi voltar mais vezes, apesar de já não lembrar o que tinha me levado àquele lugar... Fazer amigos, talvez? Bem possível! Despedi-me do distinto cidadão da janela e segui o meu rumo, andando com a segurança de quem sabe aonde quer chegar – eu sempre fui um bom ator!

Até que um cheiro muitíssimo agradável cruzou o meu caminho e como um gancho içou-me pelas narinas à cozinha. Lá haviam ainda mais cheiros e vapores. Sons de “tss”, “blub”, “crash” – ops, este fui eu esbarrando num prato, sempre desajeitado! Aquele lugar remetia-me a uma sinfonia da infância... E de repente, sem perceber entrei no ritmo fazendo um “rounc” com minhas entranhas adestradas.

Sentei-me para o banquete, onde mastiguei coisas enganosas: caras bonitas e gostos estranhos. Não, não comi gente! Já não o faço desde... Que falta faz um calendário! Ah, sim: desde que notei o quanto os dedos mindinhos fazem falta. Acabei a refeição - os guardanapos estavam ótimos! Adoro quando são coloridos, me deixam alegre por dentro.

Não sei que lugar é este ou o que me trouxe pra cá, mas sei que aqui sou muito importante! Todos comem e dormem ao meu redor. Muitos até se vestem iguais a mim e imitam o me caminhar – sempre fui um criador de tendências e adoro tender a mim mesmo. Só não recordo o título que ostento - serei eu algum tipo de rei? Uma divindade, talvez? Realmente não lembro... Muitos preferem me adjetivar, ressaltando minhas qualidades ao chamar-me de “paciente”- tão gentil da parte deles! - confesso que preferiria algo como “garboso” ou “genial”, mas...

O restante do dia pulou “de dois em dois”. Nunca aconteceu com você? Ah, comigo é algo frequente, mal pisco e o dia acabou! Não fiz muitas coisas, mas é preciso levar em consideração o quão difícil é agir quando você ocupa o corpo de outrem. Às vezes os membros simplesmente não obedecem. E com a noite o dono sempre vem reclamando o patrimônio – mais uma luta árdua: Fui, voltei. Mundo perto, mundo longe. Perto e longe, perto e longe – um grito mais alto, um pouco de violência e... Pronto! “Esta casa ainda é minha! Enfie sua ordem de despejo no rabo – de outro – porque o este agora me pertence! Haha”

Exausto, mas satisfeito, mastigo algumas coisas desprovidas de forma ou sabor e me deito. Fecho os olhos, recebo as gotas milagrosas que me abastecem de vida e finjo novamente dormir – até ronco! – afinal: eu sempre fui um bom ator.








Imagem: Dave Mckean
*Conto publicado na SAMIZDAT #19

Comentários

well souza disse…
Acho que todos somos quase alguma coisa... sinal de loucura é a certeza cega! rsrs

ótimo blog!

p.s.: Conheci seu trabalho na revista SAMIZDAT, tem um dia livre lá e estou pleiteando na comu. do orkut. Muito legal o trabalho desenvolvido!

Bjão!
well souza disse…
OPs,
quando escrevi, lá no meu blog, que tinha ganho o concurso, na verdade queria dizer que Não ganhei "em primeiro"
Ganhei menção honrosa, e parabéns pela sua também!
Obrigado pela visita e pelas palavras!
bjão!
Anônimo disse…
Ola!
Obrigado pelo comentário no meu blog...

Não me recordo onde encontrei a imagem da ampulheta,
Muitas vezes escrevo é só depois deambulo por alguns sites
ou até pelo google procurando imagens...

Só mais nos ultimos textos é que fui pondo a origem das imagens, em reconhecimento também pela arte dos outros que na maioria das vezes tem nome.
Abraço
Unknown disse…
Adorei o blogue! Foi minha afilhada Carolina que me recomendou, ela sabe das coisas...Abração