Até que o amor os separe...

...ou una, de uma vez por todas
Publicada no Caderno Mulher Interativa - Jornal Agora
25-26/Setembro - Ilustração de Lorde Lobo

Pessimistas, feministas e masoquistas acreditam que a forma mais fácil de odiar uma pessoa é casar-se com ela – basta deixar que a vida aconteça e assistir até que o amor os separe. É preciso amar para de fato atar sua existência a outra. É preciso amor para aceitar que aquele ser amado já não fica bem neste laço. É preciso muito amor – e coragem – para desatá-lo. E, por fim, é preciso ainda mais amor, para lutar contra as perspectivas, superar as expectativas e permanecer, nos dias de fartura e nos de seca – de juventude, de saúde, de alegria, de paciência... 

E, quando falamos de nuances, é preciso estar na pela de uma mulher para entendê-las. Ou criá-las...

Ela está sentada: pernas entreabertas, vestido estrategicamente bagunçado deixando as coxas à mostra e “acidentalmente” um pouco da calcinha – escolhida a dedo – vermelha. Decote descaradamente aberto expondo os seios já não tão fartos. Bagunça o cabelo, tira os óculos, pega a colher que jaz esquecida sobre o que restou do pote de sorvete. Solta uma risada boba, sem propósito, olhando para a tela da Tv sem fazer a menor idéia do que está passando. Não importa. Desde que o alarme improvisado funcione... Ainda não foi dessa vez! É preciso outra risadinha, agora um pouco mais alta e... ah, funcionou!

O marido, de costas para o sofá em que a esposa se encontra, parece, aos olhos dela, estar trabalhando em “algo inútil no maldito computador”. Ao ouvir o barulho, se vira na direção daquilo que ele julga ser a fonte de tamanha graça: a Tv, não a mulher – que acabara de entrar num estado de desespero silencioso. Sem captar o motivo de tanta risada, ele a olha, de relance... “É a minha deixa”, pensa ela, e lambe a colher de sorvete, lentamente, fingindo-se distraída. Joga uma das pernas sobre o braço do sofá, como lera no manual de sedução de sua revista favorita.

E ele... Não, ele não volta para a “porcaria importantíssima” em que estava trabalhando. Ele para. E, por alguns instantes, olha fixamente para aquele “quadro recém pintado”, como quem acabara de chegar num espetáculo já no meio, tentando entender “o que diabos eu deveria entender?”. Acontece que ela é tão convincente em seu papel de distraída que ele acredita e volta ao trabalho. E ela ri, agora não mais um riso forçado – ela gargalha, sentindo-se a mais patética das criaturas. Ri de si mesma e daquela situação ridícula. Ri dele e da porcaria da colher que nem gosto de sorvete tinha mais! Ri, enquanto algumas lágrimas lhe trazem a boca o gosto das memórias.

Ah, o casamento... O deles sempre foi formidável! Casaram-se apaixonados, ambos realizados em suas carreiras, ainda jovens e bonitos. O convívio era excelente: dividiam tudo, riam de tudo, pareciam saídos de um comercial de margarina. E o sexo... Uau! A química era perfeita! Bastava um toque e a combustão era imediata – mal podiam se olhar! Formavam, sem dúvidas, um casal perfeito! Tinham um casamento invejável! Tinham... E agora, mal podiam se olhar...

Quando se pegou pela primeira vez perdida em tais pensamentos, culpou a sogra, o trabalho, a TPM: “precisamos de férias, é isso!” e as férias vieram, e foram, e vieram de novo, repetidas vezes – as dúvidas e os culpados também: as crianças, os hormônios da menopausa, da andropausa, a casa: “precisamos redecorar” o feng shui salvou o meu casamento – dizia a matéria da revista. E a casa teve um arco-íris de cores, um leque de estilos e uma dúzia de endereços. Fizeram terapia, aulas de dança, meditação, medicação! “Mas tudo bem, isso é absolutamente normal... Nosso casamento é perfeito!” – repetia isso como a um mantra, tentando convencer a si mesma.

Mais tarde, bem mais tarde, ele reclama que ela está com dor de cabeça, novamente – “deve ser de tanto que rir”, pensa ela, um tanto irritada e outro, magoada. Mais cedo, bem mais cedo, ele não era assim... Achava sexy até a cara que ela fazia enquanto escovava os dentes. Fugia dele pela casa, sempre que se arrumava para uma festa. Ela lhe achava tão chato; ele lhe achava tão linda! – ah, como ela se arrependia por não ter aproveitado mais! Como queria ser “chateada” esta noite!

Acontece que ele ainda a achava “tão linda”, só não entendia o porquê dela sempre “parecer” recuar quando ele tentava uma investida mais íntima – “Deve ser impressão minha, só pode! Afinal, ela sempre gostou do meu jeito” – e lá ia ele novamente: na mesma hora de sempre, com a mesma mão no mesmo lugar de sempre (mão esquerda no seio direito). E essa noite, não seria diferente. E ela, respondia com a mesma frase de sempre, a qual ele estranhamente não havia decorado: “vai devagar amor, preciso de mais clima...”

“Clima? Antigamente podia nevar que ela estava sempre no clima” – pensa ele, um tanto irritado, outro, magoado, mas não fala. Só faz uma careta e recolhe a mão – uma careta que, mesmo no escuro, ela consegue perceber e responder, por meio de um longo e profundo suspiro.

Já é madrugada e ela mal dormiu, pensando na ironia de sentir saudades de alguém que está fisicamente tão próximo... Até que, subitamente, o corpo dele, sem sequer acordar, procura o dela... Já é quase de manhã, já faz quase uma semana, um mês, ou talvez dois – quem está contando? – então, ela sorri e se contenta com o que vem e como vem. E lá vem ele com a boa e velha mão esquerda sobre o seio direito, como sempre foi... E veio. E foi. E ela, bem, ela continua acordada, pensando no quanto gosta daquela mesma mão, daquele mesmo homem, daquele mesmo jeito... Como sempre foi.

Quando acorda, o marido já saiu para o trabalho. Ela cheira o travesseiro dele, sorri e se levanta. Vai até o banheiro e toma um longo banho, vistoriando o próprio corpo atrás de algo que mereça levar a culpa, algo que esteja “fora do lugar” e encontra muitos suspeitos, mas nenhuma prova concreta. Encara o espelho, num momento profundo em que vê muito mais do que gostaria... E chora... 

Chora por tudo o que mudou, e pelo que nunca vai mudar, chora porque ele é tudo o que ela mais ama no mundo, chora por ter um “casamento perfeito” e chora, simplesmente porque gosta de se ver chorando ao espelho.

Nota: crônica produzida sobre o conto “O casamento”, escrito pela mesma autora em fevereiro de 2009.

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