Foco, Rotina e uma Vida Fodida

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É duro dizer isso, mas... Sim, a vida precisa seguir uma rotina. Talvez não a vida em si, mas os seres que se dizem - e pretendem assim continuar - vivos, sim. Ainda que tarde, uma ora é preciso definir uma hora: uma hora para dormir-acordar, comer-cagar (ops, polindo o texto: ir ao toillet de merda), uma hora para trabalhar em busca de recompensas; uma para recolher tais recompensas e usufruir. Hora para descansar, ficar só, largado num canto de cuecas e meias, furadas, comendo porcarias processadas e processando ideias não muito melhores – furadas, porcarias. Hora de sair, de fazer a barba, socializar, de camisa decente e sapato apertado, encontrar os amigos, beber, rir, brigar, comer, beber mais um pouco, voltar a sorrir, andar a esmo em busca de uma qualquer, indecente, alguém com quem se possa anestesiar o cérebro em banalidades e, na sorte, afundar o corpo em um pouco de delírio compartilhado, cotidiano, coletivo* - se há um compromisso que se deve cumprir com pontualidade é a hora de trepar (ops, polindo o texto novamente: praticar a porra do sexo) - quem não trepa por algum tempo acaba virando um fodido - sem trocadilhos, juro! É fato. 

(ops, última polida: se o meu "fodido" não lhe agrada, aconselho você, criatura puritana que não deveria ler meus textos, a entender isso por "estrepado/estropiado/arrasado pela realidade", ou então, dispense minhas palavras e procure por algo politicamente correto, uma grande rolha de cortiça para preencher seus vazios - o mundo está cheio de criancinhas mortas de fome, animaizinhos maltratados e vice-versa. Escolha sua rolha. De nada adianta xingar uma folha de papel ou tela de computador. Eu só escrevo, não detenho nenhuma verdade. Não torra!).

É duro dizer isso, sobretudo quando se tem um respeito quase religioso pela caoticidade, mas manter a sanidade requer disciplina. A tendência natural de um indivíduo que larga o foco de mão e se deixa levar pela onda da vida é acabar fodido. Fodido e maluco. E quanto mais maluco, mais fodido. Digo isso por experiência própria! Já estive fodida e maluca, e garanto que não tem nada de romântico nisso.

Certa vez, decidi me rebelar. Joguei tudo para o alto, bem longe. Eu disse TUDO. O meu tudo, claro: trabalho chato, profissão promissora, relacionamento estável – proeminentemente chato – casa da mamãe... Tudo! E por quê? Utopia - o ópio dos visionários. Na época, tudo ao meu redor parecia estar errado. E de certa forma estava – é tudo uma questão de referencial. Não demorou muito para perceber que, na certa, quem estava fora do lugar era eu. Ocupava no mundo um espaço que não me cabia. Sentia-me uma fraude. Era uma sensação realmente horrível - um grito sufocado, uma interrogação sem pergunta, um nó na garganta... como se aquilo que os outros julgavam ser eu, não passasse de um personagem caricato, autômato ou (mal) representado por um ator anônimo, insignificante e desconhecido que agora pretendia se tornar alguém.

Sensação horrorosa aquela. E o que fiz? Dei o grito, fiz a pergunta, cuspi o nó da garganta na cara do mundo e joguei tudo para o alto - meu tudo - incluindo o foco falso que eu, ao menos, tinha, pensando que seria fácil descobrir um novo, um foco autêntico para chamar de meu. Mas, não, não foi. Claro que não. Nunca é. E encontrar um foco deve ser o objetivo primordial de um indivíduo que pretende: 1. Permanecer vivo. 2. Manter a sanidade. 3. Concatenar as ideas. 4. Coordenar as pernas (entenda os últimos dois como objetivos secundários, porém úteis para a realização dos primeiros).

Em meu período sem foco aprendi que, algumas vezes, respirar pode ser uma tarefa aparentemente impossível, mas que uma vez abandonada volta a funcionar instantaneamente, graças ao bendito modo automático. Pena que o mesmo não aconteça com funções mais elaboradas, tais como o pensar com clareza, o levantar da cama e fazer o almoço, o mastigar e engolir, quer seja a refeição, quer sejam as palavras alheias que nem sempre saem de outras bocas, o vestir-se de gente e misturar-se com os outros, e convencer a si mesmo, e por aí vai. A vida inteligente e, sobretudo, inteligível requer muito esforço. Mas um esforço desnorteado não passa de desperdício de energia. Ninguém chega a lugar algum correndo em círculo. É preciso ter um foco, agarra-se a ele e então, correr, ou andar, ou rastejar... arrastar-se até, se preciso for, mas ainda assim, seguir.

Um foco. E uma rotina. Foi essa a receita que encontrei para emergir do mar de monotonia que é o dia a dia sem regras e prosseguir, com muito esforço e um pouco de dignidade, nessa vida tão fodida.


*Referência ao tão amado (por mim) mestre Bukowski.

Comentários

Furlan disse…
Legal! Um misto de "O Alienista" e das teorias de Melanie Reizes Klein (para mim, uma das pessoas que mais entenderam Freud, nesta vida), mas... foco? Minha alma é desfocada. A luz causa deslumbramento, a sombra impede a visão. Meus olhos são míopes e a mente está completa-mente obnubilada.
Meus focos são tantos, que acredito hoje num panteísmo desfocado, disfórico, que destoa de tudo e de todos.
Não tenho tanta disciplina assim.
Para o texto, 10; para a minha vida, talvez meu foco ainda seja achar algo em que focar.
Baci!