Matar ou morrer

By Lorde Lobo

Havia saído para buscar um de seus animais de estimação na clínica veterinária de sua maior confiança. Deixara o bichinho lá para um procedimento simples, limpeza dos dentes, mas que requer a administração de anestesia geral – não que alguém no mundo goste de ser submetido a uma limpeza bucal profunda, mas acontece que os pets são um tanto mais dentuços e menos civilizados que a maior parte de seus donos e, como se pode imaginar, não costumam ir ao veterinário de livre de espontânea vontade... Geralmente as visitas a esse tipo de local são associadas à inserção de objetos gélidos em seus pequenos orifícios desavisados.

Pois bem, chegando lá, foi recebida com a mesma gentileza de sempre por uma das doutoras e conduzida ao encontro de seu filhote – que na verdade mostrou nos dentes mais idade do que o pequeno tamanho anunciava. Porém, ao entrar no consultório, percebeu estar invadindo a consulta de outro paciente. Ele parecia mal, muito mal, e, ao julgar pelo cheiro fétido que impregnava a sala, devia estar ainda pior do que aparentava. E estava. Estava morto ou em vias de. Jazia sobre a bancada de inox, com os olhos fechados, língua de fora e metade de seu minúsculo corpo envolto em sacos plásticos. E fedia, terrivelmente.

Até ter sua sessão de morte encomendada interrompida pela mãe adotiva da gata, que antes parecia ter na boca o pior de todos os cheiros, dava adeus a sua vida e a sua dor, na companhia da veterinária, enquanto a família, que o trouxera até ali, aguardava no hall de entrada. Não pareciam felizes, mas pareciam - do ponto de vista de quem acabara de chegar à cena - estarem no lado errado da porta. O lado dos que aguardam uma consulta alheia. O lado que fedia menos... Enquanto uma intrusa qualquer se compadecia da morte fedorenta e solitária daquela pequena vida que tanto lhes dizia respeito.

Bicho-bicho ou bicho-homem, na velhice e na doença toda morte é fedorenta e solitária. 
Talvez o que amenize a dor seja ter um referencial para onde guiar o último olhar e uma mão familiar onde deixar o último toque. Ou talvez seja mesmo uma dose cavalar de analgésicos, administrados por uma mão profissional... Há quem diga que, em certo ponto de martírio, o único alívio é deixar de sentir – um conforto que pode ser oferecido por qualquer mão fria e destra o suficiente para desligar o botão da vida. Morte ”matada” ou morte “morrida”, no final das contas não passam da mesma droga. De qualquer forma, só sabe quem chega lá, e nesse caso, não é bom ter pressa.

Deixando a cena de morte para trás, essa história – individual e felina – teve um final feliz: buscou sua gata. Saudável, bonita e molenga da anestesia. 

E não é que agora a boca, antes podre, já nem fedia?

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