Entre sinos e grilhões natalinos

Conto escrito para a REVISTA SAMIZDAT
Ilustração de Jairo Tx
Tomo meu remédio com uma dose de martini. Não que eu precise do primeiro ou goste do segundo, mas eram os favoritos dela. Não lembro de a ver fazendo desse jeito, mas esse é o meu jeito de dizer "I miss you, hun", como ela mesma diria.

"Martini combina com o meu vestido e com a decoração. Deveria ser eleita oficialmente a bebida do Natal! É por isso que eu adoro o Natal! Você não adora, hun?"


"Eu adoro você!"

As palavras soam de algum lugar entre o meu pensar e o ressonar dos sinos. Eles tocam ao longe... Muito longe para que eu possa vê-los, mas com força suficiente para alcançar os meus ouvidos. Ainda que eu não queira. Seu som me interpela e me ignora. Não passo de um obstáculo às ondas que passam.

Faz tempo que ela se foi. Tempo o suficiente para que as roupas com as quais a vesti já estejam fora de estação, mas não tempo o suficiente para que tenham sumido, consumidas pela terra, pelo tempo ou pelos vermes do esquecimento.

"Natal é tempo de recordar".

E quando será tempo de esquecer? Tempo nenhum é suficientemente longo para apagar certas memórias. Memórias de amor, de ódio, de dor. Sobretudo aquelas do que nem chegou a acontecer. Memórias forjadas  por planos, por desejos, pela utopia de um futuro jamais vivido. O tempo não as leva de fato, ele apenas as fragmenta em pedaços cada vez menores e os mistura, feito um mosaico.

Talvez um dia eu não mais saiba identificar nossos "quandos, ondes e porquês", talvez agora eu já não saiba. Mas ainda tenho o nosso mosaico e ele é tudo o que me resta.

"Como você pode me abandonar? Não era esse o plano!" 

Não falo sozinho, falo com um retrato, antigo e torto, pendurado na parede. Sou um clichê: a morte do espírito natalino. Ela certamente riria ao me ver num estado tão deplorável. Riria e depois abriria as cortinas e começaria a falar com seriedade, naquele tom que só as mulheres tem e que as faz parecer inquestionáveis  um tom que torna o mais duro dos dizeres doce e ao menos tempo irrefutável. Eu estaria perdido.

Pensando bem, estou perdido. Quase a vejo no balançar das cortinas. Ignoro o vento. Imagino as palavras que seriam ditas, mas não com força o suficiente para obedecê-las. Estou tão perdido quanto se pode estar. Como alguém que perde qualquer direção. Alguém que perde a vontade de seguir. Alguém que perde a si mesmo. Um corpo sem reflexo. Uma sombra sem corpo. Onde estou? Estou parado. Preso pelo medo de seguir por um caminho que não sei. Não quero seguir. Não quero saber.  Tudo o que quero é voltar a um tempo e lugar que nem sequer existem.

"Como você pode seguir sem mim?"

Tomo meu remédio com um copo de veneno. Nada tem efeito. Nada pode matar um homem morto. Nem trazê-lo de volta à vida  ainda se estivéssemos na Páscoa, mas é Natal. Outro maldito e estúpido Natal! Com todo o seu vermelho e verde, com seus estúpidos anjos e sinos.

A roupa com que me vestiram também está fora da estação. Mas não sinto frio nem calor. Não sinto fome, sono ou qualquer outra necessidade além dessa saudade de ser vivo. A saudade é uma necessidade não catalogada. Só estou aqui pelo desejo inútil de estar vivo. Pelo medo jamais ouvir novamente o badalar dos sinos, por mais estúpido que seja.

"Ao contrário de você!"

Já faz tanto tempo... Quanto tempo faz? E, afinal:

"onde diabos está você?"

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