baratas na sala de estar

[a música a tocar - e nela a lágrima a rolar - também sou eu]

Eu sou
o piano que não sei tocar
eu sou a bailarina clássica
que sonhava a menina
a girar nas pontas
dos dedos em suas
sapatilhas
baratas na sala de estar

sou o menino que dorme
em meus braços
e sorri.
sou o colo que acalenta
qualquer dor
como é aquele onde
adormeço
todas as noites
meus medos.

sou
o que restou
daqueles que amei
e partiram
ou nem sequer estiveram
inteiramente aqui. sou
a ilusão
da eternidade
sou a limitada
compreensão
da realidade
que o tempo me permitiu
ter.

sou tudo aquilo
que na vasta oferta da vida
mostra-se quase nada
no que se pode escolher.

sou
um universo de metáforas
blasfêmias, tristezas contidas
risadas fartas, cabelos
e saudades
que não quero
perder.
sou aquilo que meu filho
mantiver escrito
junto ao peito
para, uma vez partida
jamais desejar me esquecer.

...

a barata que amedronta
a menina
num canto da sala de estar
também sou eu. a mulher
que me pariu e levou consigo
pela mão
pela vida
a eterna dor
também sou eu.
sou o reflexo
nos olhos
do ser amado.
sou ainda o que pensam
os poucos
odiados.
aquele homem
de bigodes
por quem se espera
e nunca, nunca vem, também
sou eu.

e de tudo
o que sou (?)
só espero
não ter
tornado-me pior
que aquilo
que um dia fui
sabendo-me hoje
que não passo
de um monte
de pedaços
do tanto que me imagino ser.
 
 
*Publicado também na Revista SAMIZDAT

Comentários

Furlan disse…
Poesia + reflexão/introspecção é muito legal.
A métrica do pensamento, o ritmo do coração... às vezes, a rima do anseio e as estrofes da angústia.
Soma de coisas muuuuitooo boas!