Analogias

Estava naquele negócio há anos. E tinha seus dias bem contados. Não era de todo mau. Tinha seu próprio escritório instalado numa sala – de aluguel atrasado – quase no centro da cidade. E apesar de pequena, gostava de ainda estar nela. Mantinha alguns clientes fiéis que lhe procuravam – infelizmente, cada vez mais – esporadicamente. E ainda possuía o maquinário e os atributos adequados a sua área de atuação: mãos firmes, olhos bons, extrema discrição e a persistência necessária para levar um serviço até o fim, independente do quão difícil sua execução pudesse se revelar.

E lá estava ele, sentado no desconforto de sua cadeira favorita, tamborilando os dedos sobre a mesa, ao se perguntar se aquele maldito telefone ainda funcionava. Talvez a secretária tivesse se esquecido de pagar a conta, outra vez. Exceto que não havia secretária alguma. Do paradeiro da conta, ele sabia bem, mas não de uma fonte de dinheiro suficientemente boa que pudesse pagá-las – contas e secretárias... Foi quando um som agudo invadiu o silêncio, nada sereno, de seus pensamentos, trazendo as novidades: um cliente novo que o ligava e um telefone velho que ainda funcionava! Atendeu a ambos.

A conversa não levou mais que dez minutos – “nada como tratar com aqueles que estão certos do que querem”, pensou ele, enquanto averiguava no bloco as anotações recém-riscadas. Parecia um trabalho fácil, algo perfeito para um homem só, exceto por um detalhe: a informação de que talvez pudesse envolver algumas crianças – e ele as detestava! Mais do que a cachorros e dias nublados – a presença delas, certamente dificultaria um pouco as coisas, mas, por outro lado, poderia elevar consideravelmente sua margem de lucro!

Foleou as páginas, estudando o caso e as minúcias dele – e nisso levou o triplo do tempo da negociação. Quando, enfim, sentiu-se convicto de que daria conta do serviço, foi até o armário de equipamentos e escolheu atentamente o mais apropriado para o caso – nenhum dos poucos que ali havia eram exatamente ‘de primeira’, mas a necessidade e a estimação diziam que ainda deveriam servir. E eis que assim, serviam.

Pegou novamente o aparelho, discou os números e ao ouvir a voz do cliente que o reconhecia do outro lado da linha, foi logo avisando “tudo bem, eu pego, mas devo dizer: sou um sujeito da velha escola... ‘Como assim’ que, comigo, é tudo no analógico, saca? E tô levando 2 com 36, deve dar conta, não?” – a voz do outro lado da linha parecia confusa com os números e isso sempre o irritava – “Ora bolas... filmes e poses... o que mais poderiam ser?”.

A última conversa não durou mais que a primeira. O cliente desistiu no ato. E ele? Pouco se admirou, tampouco se entristeceu – “danem-se eles”. Enchia a boca para dizer que “nessa tal era digital, não se faz mais fotógrafos como antigamente”. Além do mais, detestava a ideia de queimar seu ‘rico’ filme num evento de família qualquer. Ainda mais que aqueles dois eram os últimos, não só de 36. Os últimos de todos os tempos. E o dia estava nublado. E o ISO era menor que 400.

Foto by Gene Han

NOTA: Conto surgido do desafio literário - mais um - proposto por V. Camargo Junior, trazendo como tema "O fotógrafo".

Comentários

Anônimo disse…
mais um fruto excelente de mais uma madrugada excelente!